sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Solidão


Não era para aquilo que tinha sido convidado, ou pelo menos não era o que supunha. O convite tinha-o entusiasmado: aqueles sons eram apreciados pela maioria das pessoas e, embora se não considerasse um tocador, pois nada sabia de música, era com prazer que deixava que as mãos dançassem, imprimindo som , naqueles instrumentos a que também chamavam de curadores.

O espaço não era o que já conhecia, mas um espaço publico recebedor de eventos. Sala pequena, acolhedora, recente como se podia ver pelo estado dos estofos das cadeiras. O palco era em madeira clara e apresentava-se muito luminoso.

Surpresa das surpresas: iria participar num evento cultural com as mais altas figuras da
terra. O motivo de tal honra devia-se ao facto de haver arte e artistas, escrita e pintura. E as surpresas continuavam...aquele que tão displicentemente lhe tinha feito o convite agora era o pintor de quadros, cuja exposição ali se iniciava a par do lançamento de um livro. Escritor e pintor num encontro revelador da sua criação. Quando folheou o livro, pode sentir a cumplicidade, o encontro daqueles dois seres que se abraçavam livro a dentro, um escrevendo e o outro pintando.

Ainda não era refeito da primeira surpresa, a do espaço, já se via em palco, ensaiando, respondendo em linguagem sonora e emotiva aos toques que vinham das mãos da pintora, agora transmutado em tocador cuja sonoridade era, pela sua, respondida de coração cheio. Foi um momento de expansão, de partilha, de comunhão que guarda com toda a delicadeza que ali observou. Foi lindo! Bela surpresa!

O dia cultural, formal, tem inicio.

Sala cheia. Discursos vários. Enaltece-se a iniciativa e os artistas são conotados com o valor atribuído a quem é reconhecido pelo que faz pela sua Terra. Começa a leitura dos contos agora publicados. A voz é meiga, limpa, melodiosa. Segue-se a dança do ventre num corpo maduro, ondulante e desnudado como se espera. Por contraste, no momento seguinte, o cisne morre na beleza do movimento dançado por um corpo menino e frágil mas igualmente belo: a poesia da dança clássica!

Prosseguimos com a voz, de preto vestida, na alma de um fado que fala do mar, da faina, da partida, da espera, da angustia e do amor. Voz jovem e bela, cabelos negros e longos, olhos que se fecham sobre a grandeza do sentimento.

Depois tudo pára. Lança-se o livro: beijos, sorrisos, alegrias, autógrafos, cumprimentos, amigos, intimidades, realização, comes e bebes e ....a sua solidão.

A solidão de uma dança do ventre não dançada,
A solidão de um cisne, um apenas, não dançado,
A solidão de um livro não escrito, de uma pintura não pintada, de um cumprimento não recebido, de um amigo não tido, de um beijo não dado, de uma intimidade não vivida, de uma realização não realizada...

Agora é hora de subir de novo ao palco, hora da conversa dos tocadores A conversa não se faz. Um deles encontra-se na solidão.
"Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?" Sermão da de Stº António, da Quarta Dominga do Advento, S, I, p236