sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

        



Até ser Primavera

Na primavera da vida todos os sonhos são possíveis. O ano, este bissexto, detestava particularmente esta apreciação. Por que carga de água (esta mais frequente no inverno e no verão dependendo da geografia do lugar), teria a primavera direitos que às outras estações eram negados? No mais fundo de si próprio, o ano bissexto, sentia-se como aquela mãe para quem, preferir um filho a outro era incompreensível. Cada um era o que era, dava e tomava de si diferentes emoções e sensações, mas a todos queria com a mesma intensidade. E sonhos, sonham-se em todas as estações ou melhor, sonhar é brincar com a vida que é um assunto muito sério.


Assim, o ano bissexto decidiu convocar todas as estações para refletirem sobre o problema e juntos encontrarem forma de mostrarem aos humanos que as estações do ano não são responsáveis pelos seus sonhos ou ausência deles.
Nesse dia a confusão instalou-se. O inverno foi o primeiro a chegar, era a sua estação. O dia acordou gelado. Todos se cobriam de agasalhos, mas de repente foi preciso tirar os gorros e as luvas pois o sol despontou suave e luminoso. Sempre pontual, a primavera que chegava sob o olhar incrédulo, dos que passavam por parques e jardins da cidade, perante o desabrochar das flores ou o seu crescimento a um ritmo nunca visto. A natureza parecia estar louca.
Ainda mal se tinham recomposto daquela súbita manifestação primaveril, em pleno inverno, já o verão se mostrava no seu esplendor decidido a chegar a horas à reunião. Flores murcharam de sede e as esplanadas encheram-se de gente e de roupagens despidas, ali mesmo, e penduradas em cadeiras. Até as praias viram as suas areias repletas de banhistas, desprevenidos, deixando as botas à beira mar e mergulhando os pés no oceano.
Os jornais não falavam de outra coisa. O dia caminhava pelas estações do ano deixando perplexos os homens e as mulheres, as crianças, os animais e os vegetais. A vida confundia-se ao ritmo da chegada das estações à reunião urgente.
Ao longe o outono anuncia-se e as folhas caem. Ventos fustigam a cidade e os habitantes recolhem as roupas, já temerosos do que o dia ainda lhes poderia reservar. Alguns diziam que um tempo assim não era bom sinal, outros lembravam que o tempo apenas manifestava o desprezo que a humanidade mostrava ter pelo planeta. Ninguém se entendia.
Finalmente as quatro estações estavam reunidas na casa do inverno que espalhou por todo o lado alguns flocos de neve como que agradecendo a presença de todos, na tradição de bem receber. Na rua tudo voltou ao normal. As gentes finalmente sentiam-se protegidas pela normalidade. Afinal estávamos em janeiro.
O bissexto abriu a sessão, feliz por ver os filhos reunidos. Primavera alega nunca ter influenciado os humanos na atribuição, a si, do sonhar da vida mas não se admirava de tal pois as suas manhãs, luminosas e calmas, e a harmonia das suas temperaturas chamavam à melancolia e ao sonho. Afinal ela anunciava o fogo do verão. O fogo é tumultuoso, chama à preguiça, pelo muito que desgasta. O outono talvez seja demasiado cinzento, para os sonhos desejados e o inverno, esse nem se fala, quem é que pensa em sonhar com chapéus-de-chuva a voar e poças de água a cada passo?
A discussão parecia não ter fim mas o ano bissexto, mais maduro, chamou à razão os seus filhos querendo ouvir o que cada um tinha para dizer. Assim, o verão, suado, mostrou o seu lado brilhante e o conforto das suas noites de ventos mornos e pares de namorados à beira-mar, olhando a lua. Assim se sonha no verão.
O outono lembrou a beleza das folhas caídas, pintando as terras, as estradas, afagando as bases das árvores, aquecendo-as em camas coloridas, verde limão e laranja tijolo, chamando ao recolhimento e ao sonho de uma natureza que humildemente se despoja, sabendo que desse despojamento nascerá a vida, renovada. Assim se sonha no outono.
Já o inverno olha-se e recorda que consigo, à noite, as lareiras ardem em alentos que confortam. As bebidas quentes e as comidas fortes juntam as famílias, que se resguardam. Consigo, belos são os campos repletos de neve e os farrapos caindo das árvores. Tudo se cobre, sob um manto branco de candura,  e nas montanhas os homens brincam como meninos. Assim se sonha no inverno.
Fez-se silêncio. Afinal o sonho não era apanágio da primavera. Há sempre razões para sonhar, se desperto se está. 
Bissextos e os filhos resolveram então tomar uma atitude. Era preciso colocar o sonho no lugar que lhe pertencia, o de não ter um lugar em particular. Chamaram todas as forças da natureza. Falaram com o deus sol e a deusa lua e todos os deuses e deusas do firmamento. Pediram-lhes que se unissem para juntos mostrarem aos humanos que a primavera da vida não tinha época, que a vida era indivisível, inseparável da morte, que todas as estações da vida são parte dela e que o homem sonha porque é homem.
Todos os deuses se uniram. Dali até à primavera, a natureza, nas suas mais variadas formas, enviou mensagens subtis a todos os homens e mulheres que davam como perdida a primavera da vida.
Nesse ano bissexto, foram muitos os que realizaram sonhos esquecidos e a primavera sorriu em pleno inverno.

2014.01.20
Aldora Amaral